Opinião
por Caroline Araújo
Eisenstein pontuou em sua obra “A Forma” que para conseguir voar o homem estudou atentamente o movimento das asas dos pássaros. E ao se dar conta das múltiplas funções que elas desempenham durante o voo, pensou que através da junção, da montagem dessas partes em uma outra ordem, poderia criar algo que pudesse ajudar o homem a voar. Surgiu assim o avião. Trazendo esse pensamento para o mundo da arte; para criar uma obra de arte, para conhecer e transformar a realidade através da arte, o homem deve trabalhar assim como trabalhou para inventar o avião. Arlindo Machado (1997) aponta que a arte do movimento nasce e se mantém até hoje sob os signos da revolução e do experimentalismo. Entre os tempos transcorridos dos primórdios da imagem movimento até a era digital, o campo cinematográfico sofreu transformações que modificaram expressões técnicas, estéticas e conceituais.
Entender como essas transformações podem auxiliar no labor das narratividades que seguem no campo cinematográfico, é compreender em si o conceito da imagem em movimento (consumidora de tempo) que nasce da superposição ou contraponto de duas diferentes imagens imóveis. Parece fácil. Apenas parece. A métrica de um filme é justamente a equação da junção das tais partes do pássaro para compor um todo. Se uma dessas partes estiver em desalinho, não se voa. No caso do filme, não se sustenta.
A sustentação fílmica não é simples. Um filme é uma obra de arte totalmente artesanal, onde aquele cuja a alcunha de diretor carrega, dosa, cada parte desse todo de forma a criar um vinculo, um tom, um ritmo, uma continuidade, um todo. Ao longo de mais de 5 décadas dedicadas ao ato cinematográfico, Martin Scorsese personifica, aqui uma espécie de artesão dessa indústria cinematográfica, pois, remodelou na década de 70 do século passado os filmes sobre gânsgster.
Atmosfera que opera com uma sinergia sem igual, mistura sua própria constituição enquanto Nova Yorquino, descendente de italianos , e extremamente devoto a Igreja católica. Em 1972 dirigiu “Boxcar Bertha” que o ensinou a fazer filmes baratos e depressa, preparando-o para o seu primeiro filme com Robert De Niro e Harvey Keitel, “Mean Streets”, de 1973. Desse momento em diante, esse filho de migrantes, sabia, o que ele poderia fazer com uma câmera. A identificação de Scorsese com o mundo marginalizado de Nova York cedeu espaço para a construção de obras como “Taxi Driver”(1976), “Os Bons Companheiros”(1990), “Cassino” (1995), “Gangues de Nova York” (2002), “Os Infiltrados” (2006) e o “Lobo de Wall Street”(2013). Em todos esses títulos citados, Scorsese sabia muito bem que se você tem um bom conflito, você consegue operar as partes do todo para construir a obra que se pretende.
Em seu mais novo trabalho “The Irshman – O Irlandês” (2019), Scorsese pontua de forma mais específica o universo da máfia, sem sopapos ou odes sanguilonetas, contudo, extremamente carregada e melancólica. Resignado e brutalmente açoitado pelas memórias melancólicas das escolhas feitas que guiaram seu caminhos, temos um Frank Scheeran, interpretado por Robert De Niro que personifica a culpa e o pecado em carne e osso. Essa melancolia esta presente na ótima fotografia que explora os tons frios, nos excelentes momentos de silencio que De Niro possui, onde vemos pelas suas expressões como ela vai carcomendo as relações humanas, que vão sendo descartadas feito cartas de baralho, de acordo com as traições entre os individuos da história.
O trabalho de Scorsese para além do pulso firme na direção e fiel a própria cartilha construída de como se fazer bons filmes de mafiosos, foi ter reunido três monstros de atuação inigualáveis: De Niro, Joe Pesci e Al Pacino. Assistimos na tela, em especial na sequência do jantar de premiação de Frank ( com muitas familiaridades com outra obra de Scorsese “Cassino”), uma verdadeira aula de interpretação. Não foi a toa que Pesci, saiu da aposentadoria para fazer este trabalho. Pacino explode. Grandiosamente. Um furacão personificando Jimmy Hoffa. E Pesci é mais que excelente. Minimalista na pele do chefe da família criminosa da Pensilvânia, Russel Bufalino, que transforma Frank no seu próprio hitman.
Scorsese, retoma Eisenstein, quando distribui bem as 3h e 30 minutos de sua obra e trabalha com combinações emocionais, não apenas com os elementos visíveis dos planos, mas principalmente com cadeias de associações psicológicas, na montagem feita por Thelma Schoonmaker, sua parceira de mais de 30 anos de carreira. Observamos uma vida inteira (de Frank) fluindo através das décadas, seguramos na mão dele e o acompanhamos em seu calvário. Temos um trabalho maduro, que encena vários filmes possíveis dentro de um só, que extrapola a própria tela nos extra campos, justapondo planos em conflito e gerando significado. Uma aula de cinema, na pura essência da imagem movimento.